Marchando contra o esquecimento: Srebrenica como uma ponte entre Ocidente e o Oriente
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Zlata Filipovic |
No décimo sexto aniversário do massacre de Srebrenica, eu resolvi escrever um pequeno texto em forma de ensaio – como aqueles dos livros de Guinzburg, dos quais eu sou fã – uma vez que minhas motivações para tal composição são tanto pessoais quanto profissionais. Preparo-me para submeter um projeto de mestrado onde pretendo trabalhar com identidade cultural e representação na guerra da Bósnia através da analise de dois álbuns em quadrinhos do Joe Sacco e do diário de Zlata Filipović – a menina que retratou o dia-a-dia de Sarajevo sitiada em seu diário, mais tarde editado em servo-croata pela UNICEF – tendo como fio condutor dessas narrativas o cotidiano.
As linhas que se seguem demonstram um pouco da problemática em torno da guerra, indo além da tradicional resposta ao conflito, de que este foi apenas ocasionado pelo desmembramento da antiga Iugoslávia e indo mais além até as raízes de um problema conceitual, o Oriente.
1.
Há uma antiga tradição no interior do Brasil chamada de “a procissão das almas” na qual, supostamente, os mortos deixam seus túmulos e vagam pela cidade em procissão a meia noite em ponto no dia de finados. Essa é uma lenda do folclore popular brasileiro, país de maioria católica localizado na America do Sul.
Mufti Mustafa Cerić ao lado | de Bill Clinton |
Não obstante a gigantesca distancia entre o interior do Brasil e o interior da Bósnia-Herzegovina, há um trágico fato que pode traçar um incrível paralelo entre essas duas culturas aparentemente tão distantes. O paralelo em questão é o dia 11 de julho de 1995, o local Srebrenica, o fato; “A procissão das almas”.
Há 16 anos a Bósnia faz o caminho inverso da já citada lenda, ao invés de seus mortos deixarem os túmulos são seus moradores que deixam suas casas e marcham, refazendo o trajeto de seus pais, mães, irmãos e irmãs que não mais estão presentes em suas vidas cotidianas. Essa marcha recebe o nome de “A marcha da Paz” e até rendeu um livro intitulado Da Rosa ao Pó: Histórias da Bósnia Pós-Genocídio, do jornalista Gustavo Silva.
Os 110 quilômetros da Marcha da Paz são percorridos por olhares vazios, vidas despedaçadas, futuros incertos e saudades, muitas saudades. Esta homenagem as mais de oito mil vitimas, que foram mortas, estupradas ou conduzidas a campos de trabalho forçados faz reacender um sentimento de dor e perplexidade.
enterro coletivo de vítimas recém identificadas |
A dor é de ter perdido em tão pouco tempo – entre os dias 11 de julho e 22 de julho de 1995 – mais de 8 mil vidas, a perplexidade é mais profunda e politicamente perturbadora. A Europa, esse patrimônio inviolável, detentor “único” da herança helênica, a Europa que se iluminou com as idéias, que se positivou para fundar a moderna sociologia, que se emancipou do poder despótico de reis e clérigos para fundar sua suposta ilha de paz e prosperidade.
2.
Como esse super continente que nos impõe culturalmente os modelos aceitáveis de subordinação e inferioridade – quando nos colonizou e nos destituiu de nossas riquezas, nossa cultura, nossa alteridade – conseguiu suportar esse – apenas mais um – genocídio em suas terras? Por que as tropas da ONU que estavam lá para defenderem os civis se omitiram do socorro? Como Karadžić e Mladić permaneceram tanto tempo livres?
Nós – o mundo não civilizado – não éramos economicamente viáveis aos modelos de desenvolvimento largamente difundidos pelos teóricos europeus, e por causa disso, supostamente, nós necessitávamos da dominação estrangeira, para que as luzes da cultura e civilidade européia nos redimissem da culpa de ser selvagem, estrangeiro, bárbaro, oriental. Edward Said, uma das mentes mais brilhantes do século XX, nos agraciou com um livro de importância capital para entender essas e outras questões acerca do trato da Europa aos não europeus.
Edward W. Said |
Em sua principal obra “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, Said (2007) discute como a imagem do Oriente foi criada para representar aquilo que estava a leste das fronteiras do que se convencionou chamar de Europa. Essa imagem foi retratada por pintores, músicos, literatos e cientistas e reproduzida pela cultura erudita, popular e pela academia em toda a Europa Ocidental.
A imagem que foi instituída pela Europa, que se apropriou da denominação Ocidente para fazer um proposital contraponto a seu rival idealizado o Oriente, fora a de que o Oriente é uma terra mística, despótica, sensual e exótica, onde a coragem e bravura de qualquer oficial britânico ou inglês deveriam ser testadas. Sendo assim, o Oriente é, por convenção, representado como uma terra onde a violência impera, da qual os esforços para qualquer tipo de paz são em vão e onde os principais vilões aguardam sedentos de sangue por um novo conflito.
integrantes da marcha pela paz. |
O massacre de Srebrenica foi na melhor das hipóteses uma grande reportagem para o Ocidente. Essa reportagem consistia no relato fantástico de pessoas brancas, loiras, de olhos claros que viviam em parte do antigo mundo helênico, mas que por questões religiosas tanto das vítimas – bósnios muçulmanos – quanto de seus algozes – a religião majoritária da Sérvia é o cristianismo ortodoxo – foram vistos como uma continuação, na melhor das hipóteses, um mundo intermediário entre a Europa e o Oriente.
Hitler costumava dizer que os eslavos eram a grande sujeira da Europa, e em seu insano plano de dominação mundial, Hitler tinha encontrado um papel para os eslavos, a servidão, a escravidão. Na guerra da Bósnia e em especial no massacre de Srebrenica, os dirigentes das nações que unidas venceram o totalitarismo e salvaram do despotismo totalitário a Europa, foram ainda mais cruéis que Hitler, pois estas, simplesmente, ignoraram o massacre de mais de 8 mil civis no que geograficamente ainda é a Europa.
3.
Depois da guerra da Bósnia, houve ainda mais tensões étnicas nos Bálcãs, desta vez na região do Kosovo, área ao sul da Sérvia que lutou por emancipação desde o fim da Iugoslávia, chegando a tornar-se uma guerra em 1998 e que dez anos depois culminaria na independência deste pequeno país. Este conflito foi motivado por antigas querelas étnicas entre sérvios e albaneses que remontam a idade média.
Mausoléu de Murat I morto na Batalha do Kosovo. |
Kosovo e em particular o vale de Melros é uma importante referencia para os eslavos de modo geral, mas igualmente aos albaneses e a todo o mundo balcânico, pois foi lá que em 28 de junho de 1389 que as tropas do sultão Murat venceram a coligação de reinos cristão-balcânicos e começaram o processo de “orientalização” da Europa Centro-Oriental. Nos três séculos seguintes os turcos otomanos iriam expandir seus dominós por toda a região chegando aos subúrbios de Viena, apesar que esta jamais fora dominada pelo Império Otomano.
Um dos maiores expoentes da literatura albanesa, Ismail Kadaré (1999), retratou a batalha do Kosovo em um de seus romances intitulado “Três Cantos Fúnebres para o Kosovo”. Estão retratadas em uma das três partes do livro as andanças dos rapsodos balcânicos que sobreviveram à ofensiva turca.
Ismail Kadaré |
Esses caminham sem rumo, vagando para terras distantes sem terem mais para onde voltar. Uni-se a eles um jovem chamado Ibrahim, desertor do exercito turco que quer se converter ao cristianismo, mas não consegue abandonar a fé islâmica.
Ibrahim acompanha os rapsodos que vagam até terras aparentemente germânicas, sendo que em uma dessas cidades que eles chegam, o jovem Ibrahim é preso e condenado pela inquisição a morrer na fogueira pelo crime de heresia. Seu pecado foi ambicionar ter duas religiões ao mesmo tempo.No livro descreve como Ibrahim fora queimado vivo na fogueira e seu ultimo grito foi em latim, um sonoro NON! Uma inefável negação desse mundo.
A “maldição” de Ibrahim parece ter tomado o Ocidente nesse mundo pós queda das torres gêmeas. Há uma política velada de depreciação do Oriente e a intervenção militar em solo Oriental é o trunfo de alguns governos democráticos da atualidade.
O Ocidente é aonde a fé islâmica vêm nos últimos anos se multiplicando, muitos países da Europa Ocidental vem recebendo levas migratórias de indivíduos de países majoritariamente muçulmanos e as conversões são outro fator do crescimento deste credo na Europa.
No entanto, nos Bálcãs, onde as três religiões coabitam há pelo menos quinhentos anos, justamente lá onde o Ocidente beija o Oriente, Ibrahim em sua indecisão profetizou o que os descendentes dos colegas rapsodos iriam fazer uns com os outros.
4.
A Marcha da Paz chega ao monumento em homenagem as vítimas do massacre de Srebrenica. De tempos em tempos se encontram novas valas comuns e os corpos são transladados para o cemitério onde serão sepultados.
É um costume muçulmano colocarem mantos verdes sobre os caixões, nesses mantos geralmente estão bordados em dourado alguns trechos do Alcorão em árabe. A língua oficial da Bósnia é uma variação do servo-croata, chamada língua bósnia.
Muezzin bósnio |
Contudo, é o chamado para oração – canção em forma de lamento – do muezzin e a recitação de trechos do Alcorão em árabe que compõem a sinfonia de vozes da marcha. Depois de prestadas todas as homenagens, as milhares de pessoas presentes retornam para suas casa em várias cidades da Bósnia.
Porem, a Bósnia que estes sobreviventes da guerra percorrem não é mais a Bósnia histórica, modelo de tolerância e coexistência de distintos grupos étnicos e religiosos. A antiga Bósnia multi-étnica já não existe mais, agora há apenas faixas étnicas que separam croatas, bósnios e sérvios.
A incapacidade de unir os interesses desses três grupos étnicos se reflete na política, onde a presidência é divida entre três representantes um de cada grupo étnico. A própria seleção de futebol foi penalizada pela Fifa, pelo órgão máximo do futebol internacional, cada time pode ter apenas um presidente, e não três como propunham os dirigentes da seleção da Bósnia.
Srebrenica-Potočari Memorial Center |
Já é noite e a maioria dos participantes da Marcha pela Paz já estão em suas casas, porém alguém esta faltando, alguém ficou no monumento, difícil precisar que não regressou das 8.732 vítimas de um onze de julho qualquer. Talvez um pai que deu uma pista falsa na floresta para salvar seu filho, um irmão que ficou de fora da lista de trabalhadores do exercito de monitoramento da ONU, em missão de paz.
Esses corpos franzinos, estes rostos tristes hoje de alguma forma se juntaram a Marcha da Paz. Foram lembrados, foram “chorados”, alguém recuperou sua humanidade destituída tanto por seus algozes que perpetraram a maior limpeza étnica em solo europeu depois da Segunda Guerra Mundial quanto pelo Ocidente civilizado que virou as costas aos muçulmanos bósnios de Srebrenica dizendo-os: “Vocês estão fora de nossa jurisdição!”
Radamés Rodrigues Neto
Criciúma, Brasil. 11de julho de 2011
Referências Bibliográficas:
KADARÉ, Ismail. Três Cantos Fúnebres para o Kosovo. Traduzido por Vera Lucia do Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. 116p
SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 523p.
SILVA, Gustavo. Da rosa ao pó: Histórias da Bósnia pós-genocidio. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2011. 199p.
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