terça-feira, 9 de agosto de 2011

Muçulmanos Bósnios: Ameaça ou oportunidade?





Muçulmanos bósnios: Ameaça ou oportunidade?

Sabina Niksić[1]

“Muçulmanos bósnios querem atuar como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente.” Sabina Niksić.


Com sua cultura européia e fé islâmica, os muçulmanos da Bósnia querem agir como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente, mas ainda sim, sentem-se rejeitados. Há momentos em que Aida Begić entra em um avião e o olhar que recebe dos outros passageiros a lembra sobre os medos das pessoas e dos mal-entendidos sobre o Islam.
Famosa diretora de filmes bósnia, ela voa para festivais de filmes do mundo inteiro vestida com peças de ultima moda, mas ainda distintamente islâmica – um lenço cobrindo a cabeça e roupas descendo até os tornozelos e pulsos. “Se você usa um lenço na cabeça as pessoas imediatamente supõem que você deva ser mal-educado e primitivo”. Diz Aida, 33, cujo primeiro filme longa metragem Snow (neve) foi premiado em Cannes em 2008.
O medo global de voar com muçulmanos fazem parte do cotidiano de Begić. Apesar disso, ela nega que haja qualquer conflito entre sua fé e sua apreciação da cultura ocidental.
“Sou formada em literatura, artes e música, Bach é uma parte da minha identidade assim como Jalaludin Rumi (poeta e místico muçulmano)”, diz ela.
De fato, alguns especialistas acreditam que a comunidade islâmica dos Bálcãs, na qual a fé islâmica desenvolveu-se num contexto europeu, podem servir como uma ponte entre o oriente islâmico e o ocidente cristão.
Porem, a fidelidade dos muçulmanos da Bósnia a estes dois mundos foi severamente testada recentemente. Eles se sentem traídos pela Europa durante a guerra da Bósnia – 1992 a 1995 – e sentem-se excluídos desde então. Por outro lado, o oferecimento de assistência durante a guerra por alguns muçulmanos teve um preço.

Um Islam muito europeu.

O Islam chegou à Bósnia através da conquista Otomana em 1463 e espalhou-se através da conversão das populações eslavas locais. No entanto, apesar de mais de 400 anos de dominação otomana, o Islam nunca dominou completamente a vida religiosa da Bósnia, o país conta com cristãos ortodoxos e católicos além de uma pequena comunidade judaica.
“Pelo menos quatro diferentes religiões tem sido praticadas na Bósnia durante séculos”, explica Jusuf Ziga, professor de ciências políticas na Universidade de Sarajevo. “Mudaram-se os exércitos, mudaram-se os regimes, mas este fato é uma constante”.
Quando o Império Austro-Húngaro expulsou os otomanos da Bósnia-Herzegovina no século XIX, o país caiu sob o domínio da monarquia vinda do Danúbio. Extirpado do mundo islâmico os muçulmanos bósnios começaram a procurar sua própria identidade dentro de um contexto cristão e europeu.
Esta questão ganhou novo vigor no final do século XX, acompanhado de dramáticas mudanças no panorama político e ideológico.
Debates sobre o papel da religião, que foram mais ou menos deixados de lado durante o período comunista, foi retomado com vigor.
Mustafa Dzeko, 72, relembra como a sua religiosidade perturbava seus colegas durante o período comunista. Naquela época, muitos muçulmanos abandonaram as práticas religiosas e passaram a considerar o termo muçulmano como sendo uma etnia ao invés de uma identidade religiosa.
Outros cultivaram um senso de solidariedade com os vizinhos de outras crenças que compartilhavam sua luta para manter as identidades religiosas em face da repressão ideológica. “Eu nasci em uma família patriarcal muçulmana, mas meu velho pai fazia-me levantar em sinal de respeito quando ouvíamos o som dos sinos da igreja”, lembra Dzeko.

Retorno da fé.

A religião triunfantemente (re)entrou na arena publica nos anos de 1990. Após a queda do comunismo. Novos lideres nacionalistas aproveitaram a repressão de sentimentos religiosos e nacionais alimentando temores que outros grupos étnicos pudessem ganhar poder.
 “Quando o país que as pessoas acreditavam deixou de existir, este tinha que ser substituído por outra coisa, e Deus teve que ser colocado de volta”, diz Aida Corović, uma sociologa da cidade predominantemente muçulmana de Novi Pazar, na região de Sandžak na Sérvia.
 Na Bósnia, comunidades religiosas alegremente aceitaram esta oportunidade de restabelecer a eles próprios como uma força na sociedade após décadas de silencio.
Durante a noite, ser visto em uma igreja ou mesquita tornou-se um ato de oportunismo político tanto quanto uma prova religiosa de fé. “Não era incomum que as pessoas começassem a participar das orações na (principalmente em Sarajevo) Mesquita Bey, esperando com isso ganharem favores, tais como permissão para abrir uma mercearia”. Lembra o professor Adnan Silajdžić da Faculdade de Ciências Islâmicas de Sarajevo (FIN).
O despertar do nacionalismo étnico pavimentou o caminho para as guerras que destruíram a Iugoslávia nos anos 1990. O conflito se espalhou da Croácia para a Bósnia, em 1992, após a última declarar independência, apesar da oposição dos sérvios, que constituíam por volta de um terço da população da República da Bósnia.
As crescentes evidências de que a Sérvia e a Croácia estavam conspirando para dividir a Bósnia, levou os muçulmanos a fazer valer sua reivindicação para o país como seu estado-nacional.
Em 1993, os lideres políticos muçulmanos escolheram um novo nome étnico para a sua comunidade – bosniaks – e começaram a identificar este renomeado grupo nacional com o Islam.
Isto provocou uma luta ainda em curso no seio da comunidade muçulmana da Bósnia entre o Islam político e o espiritual. No centro dessa disputa há muitos bosniaks que valorizam sua herança cultural muçulmana, mas rejeitam a política religiosa e nacionalista.
Como a maioria dos ateus, a Bosniaks politicamente liberal, Jasmila Zbanić, outra diretora de cinema reconhecida internacionalmente, acusa os líderes nacionalistas bósnios de usar a religião para alimentar divisões e manter o poder.
"Eles trabalham duro na construção de uma identidade de 'vítima' para os bósnios e na identificando os Bosniak com a religiosidade porque eles não podem oferecer a opção de uma sociedade pluralista", diz ela.
"Pelo menos 80 por cento das pessoas "religiosas" que eu conheço nem sequer lêem atentamente o Alcorão... [mas] eles precisam do conforto da religião e sua idéia de que de alguma forma o sofrimento é bom porque faz parte de um plano divino."
Os bósnios foram de longe às maiores vítimas do conflito em termos de números. Por volta de 80 por cento dos cerca de 100 mil mortos na guerra eram bósnios.
Enquanto a ONU enviou observadores de paz e ajuda humanitária, a comunidade internacional fez pouca pressão para frear, principalmente os sérvios que levaram campanhas de "limpeza étnica", o que obrigou centenas de milhares de muçulmanos a deixar suas casas.
Um embargo apoiado pelo Ocidente sobre o fornecimento de armas para a região ajudou os já bem armados sérvios e prejudicou os muçulmanos mal armados e cercados.

Extremistas oferecem ajuda.

A difícil situação das comunidades “indígenas” muçulmanas da Europa chamou a atenção dos extremistas ao redor do globo.
De acordo com especialistas, entre 3 a 5 mil voluntários estrangeiros, principalmente árabes, viajou para os Bálcãs entre 1992 a 1995 para lutar ao lado dos muçulmanos da Bósnia.
Com eles, trouxeram o wahabismo, uma interpretação radical do Islã da Arábia Saudita, com o qual os muçulmanos bósnios não estavam familiarizados.
Esta ramificação extremista do Islã, que não só proíbe as mulheres de sairem de casa sozinhas, dirigir ou caminhar em meio a homens solteiros e também pede aos muçulmanos que rejeitam a companhia de "infiéis" atraiu inicialmente alguns muçulmanos da Bósnia que lutaram ao lado dos árabes.
"Não há chance de que [o Ocidente] não sabia o que estava acontecendo aqui... mas só eles [árabes voluntários] vieram para nos ajudar, e agora eles são retratados como terroristas", queixa-se Semin Rizvić, 39.
Um cantor da Bósnia Central no pré-guerra, Rizvić abraçou o Islã conservador, enquanto lutando ao lado dos árabes, e hoje a maioria dos bósnios o descreveria como um wahabita por causa de sua longa barba e esposa totalmente coberta.
"Neste momento, só sou descrito como terrorista pelo Ocidente, mas eles [tradicionais muçulmanos bósnios] serão os próximos", prevê.
Quando a guerra terminou, os fundamentalistas religiosos continuaram a penetrar na abalada sociedade Bósnia. Arábia Saudita financiou uma série de instituições de caridade que tentou convencer os tradicionalmente mais moderados muçulmanos bósnios a abandonar a sua versão da fé.
Em um país arruinado pela guerra e com taxas de desemprego entre 80 e 90 por cento, os incentivos econômicos que essas instituições de caridade estavam oferecendo tentava muitas pessoas a adotar a “verdadeira” e sauditas vertente do Islã.
Enquanto a comunidade islâmica oficial da Bósnia, liderada por Mustafá Cerić, focada na alta política, os ativistas wahabitas pregam a todos aqueles que se sentem negligenciados pela sociedade – os jovens, os incultos, os pobres e os confusos.
As novas comunidades wahabitas – pequenas, mas barulhentas – atacam as praticas tradicionais dos muçulmanos bósnios. Argumentos irrompem nas mesquitas, onde os tradicionalistas às vezes recorrem a socos para expulsar seguidores wahabis, que os acusam de serem “falsos” crentes.
"Muçulmanos bósnios foram muito ofendido", lembra Ziga. "Eles não estavam dispostos a aceitar esses problemas políticos, dos que acreditam falarem em nome de Deus que transformaram as mulheres em tendas ambulantes."
A gravidade do conflito entre os seguidores das duas diferentes interpretações do Islã foi realçada quando a polícia sérvia prendeu 12 supostos wahabitas na região Sandžak em 2007.
Em julho de 2009, um tribunal de Belgrado condenou-os a mais de 60 anos de prisão por planejar ataques terroristas e assassinatos. A meta incluía o ataque a Muamer Zukorlić, um líder clerical islâmico local que está intimamente ligado à comunidade islâmica da Bósnia.
"Eles esperavam desestabilizar a nossa comunidade islâmica, e eles quase conseguiram", diz Rešad Plojović, um assessor de Zukorlić.

Wahabismo em retirada.

Na Bósnia, a Comunidade Islâmica enfrenta crescentes críticas de Bosniaks liberais e seculares que os acusam de ter apoiado discretamente a ascensão do wahabismo.
"É possível que Cerić é inspirado pela filosofia do movimento wahabita, cujos prejuízos as atividades da comunidade islâmica nunca foram abertamente repudiados", disse recentemente o jornalista Damir Kaletović no popular programa de investigações televisivo, 60 minutos.
Cerić rejeita categoricamente essas críticas e descreve seus críticos como: "os seguidores de idéias comunistas ossificadas que se envergonham de sua própria identidade”. Existem mais wahabitas em Viena do que em toda a Bósnia.
Alguns especialistas em segurança e estudiosos concordam, alegando que as preocupações expressas sobre a ascensão do radicalismo religioso na Bósnia têm sido muitas vezes exageradas.
Eles vêem os ataques contra as lideranças islâmicas como uma reação à tentativa Cerić de aumentar o papel da religião na sociedade bósnia.
"Os muçulmanos estão lutando por uma identidade étnica e nacional, em vez de uma identidade religiosa," sustenta Dino Abazović, um estudioso da sociologia religiosa em Sarajevo.
"A experiência de viver em uma sociedade historicamente secular tem tido uma influência muito maior sobre a comunidade muçulmana da Bósnia que qualquer um dos debates religiosos no curto período pós-comunista", acrescenta.
Na verdade, a rede wahabita na Bósnia começou a se dissolver quando o país retornou gradualmente à normalidade depois da guerra. Os extremistas sofreram outro golpe após as autoridades fecharam uma série de instituições de caridade sauditas após os ataques terroristas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001.
Hoje, alguns ex-wahabitas voltaram a práticas islâmicas tradicionais, enquanto outros estão voltando para a comunidade muçulmana da Bósnia que uma vez os rejeitou.
Semir Imamović, editor do semanal Saff, uma publicação wahabita que se reposicionou como uma revista conservadora islâmica exemplifica essa mudança de coração.
"A comunidade islâmica é a instituição religiosa suprema dos muçulmanos bósnios, e nós respeitamos isso", diz ele. "Todos os muçulmanos são meus irmãos, mas podemos discordar e criticar uns aos outros." Hoje, a Saff freqüentemente critica o extremismo religioso e apóia o diálogo inter-religioso.
Esta mudança de posição deixou alguns seguidores radicais do wahabismo sentindo-se irritados e abandonados, no entanto, eles ainda sonham com um estado puramente islâmico.
“A Bósnia pode ser um estado muçulmano” diz Senad Hukić, um economista de trinta e poucos anos da parte nordeste de Tuzla. “A comunidade islâmica, com sua visão distorcida do Islam, nunca trará progressos para este país.”
Hukić diz que um modelo para uma verdadeira sociedade islâmica pode ser encontrado em uma das pequenas comunidades puramente wahabitas remanecentes. A aldeia nordeste chamada Gornja Maoca.
Lar de devotos “linha dura”, essa comunidade vive num estado de isolamento virtual, sem acesso a aparelhos comuns como televisão ou telefone, a policia mantém uma constante vigilância.
Nusret Imamović, um chefe de aldeia local, recusou-se em falar com este jornalista. Um intermediário explicou que Imamović acredita que “nossa mensagem é sempre distorcida.”
Juan Carlos Antunez, um militar espanhol especialista em extremismo religioso com anos de experiência na Bósnia, diz que o Islamismo radical não representa uma grande ameaça.
Ele estima que dentre a população bosniak, que é de cerca de 2 milhões, não mais que 3.000 sigam a versão patrocinada pelos sauditas do Islamismo. Destes, um número menor, cerca de 200 “poderiam pensar em um caminho perigoso e exigem acompanhamento especial.”
Antunez adverte que colocar todos os muçulmanos da Bósnia sob um escrutínio especial passa a mensagem errada, ao sugerir que todos os muçulmanos não são confiáveis.
“O principal obstáculo para a disseminação do Islam radical na Bósnia não é a OTAN ou a União Européia ou qualquer outra organização internacional, mas os próprios muçulmanos daquele país” sustenta Antunez.
“Muçulmanos bósnios não são uma ameaça para a Europa, são uma oportunidade.”

Não nos excluam.

Com todos os seus desentendimentos, muçulmanos bósnios religiosos ou seculares unem-se em um sentimento de exclusão por parte da Europa em meio a sua pior crise política do pós-guerra.
Eles dizem que o Ocidente não conseguiu verificar o nacionalismo radical dos sérvios da Bósnia, juntamente com sua retórica de secessão, e continuam a discriminar os muçulmanos bósnios.
Eles especialmente ressentem-se da recente decisão da Comissão Européia de conceder isenção de vistos para os cidadãos da Sérvia, mas não aos da Bósnia Herzegovina.
Como bósnios croatas e sérvios bósnios muitas vezes tem dupla cidadania, com passaportes da Croácia ou da Sérvia que podem esperar tiara o Maximo proveito do novo regime de vistos. Como resultado, a exclusão da Bósnia efetivamente barra só a comunidade muçulmana da Europa.
Bruxelas insiste que compete ao governo bósnio garantir que o país atenda os padrões de referencia necessários que permitam a Bósnia unir-se ao regime de isenção de vistos, mas poucos muçulmanos bósnios levam esta mensagem como válida.
“Isto nos coloca numa posição de discriminação psicológica e nos faz sentir indesejados”, diz Cerić sobre a decisão de Burxelas.
Alguns especialistas acreditam que este senso de exclusão pode radicalizar os muçulmanos da Bósnia, embora seja mais provável que este radicalismo assuma a forma de nacionalismo secular do que de fundamentalismo islâmico.
Sacir Filandra, presidente da organização cultural da comunidade Bosniak,  Preporod, diz que a Europa esta perdendo uma oportunidade de moldar a identidade de uma nova geração de muçulmanos bósnios.
“Se você isolar uma comunidade e tratá-la com desconfiança, isso vai em algum momento começar a afetar a maneira que a comunidade percebe-se”, diz ele.

Precisamos conversar.

Medina Velić, uma muçulmana bósnia que agora vive na Áustria, relembra a experiência de discriminação anti-muçulmana em Viena, quando ela começou a usar o lenço islâmico aos 16 anos.
“No primeiro dia de aula daquele ano, minha professora de pelo menos cinco anos disse a todos que eu era uma aluna nova e pediu para eu me levantar e me apresentar” lembra-se agora com 22 anos. “Para eles, eu não era mais a mesma pessoa”.
Velić tinha 11 anos quando sua família se mudou para Viena, onde seu pai foi enviado para trabalhar como Imam e sua mãe como professora de religião para a numerosa comunidade bósnia muçulmana. Apesar de estar na extremidade da recepção de “percepções estereotipadas” por parte de alguns cidadãos europeus, ela insisti que a interação dos muçulmanos bósnios com a civilização ocidental tem sido geralmente mutuamente benéfica.
“É muito importante para os muçulmanos iniciarem o dialogo para ajudar os outros a nos conhecer, precisamos conversar!” Afirma Velić.
Outros muçulmanos bósnios que vivem agora na Áustria concordam: a fé islâmica e os valores europeus não são contraditórios. "Provamos que é possível ser tanto muçulmanos quanto europeus," diz Belkisa Bulut, 45 anos. 
“Nós vamos a shows de rock e a peças de teatro, mas também vamos a mesquita”, ela adiciona “O nosso Islam é o melhor exemplo para o Islam na Europa”.


[1] Matéria originalmente publicada em 31/10/2009 em lingua inglesa na web site da revista alemã Globalia (http://www.globaliamagazine.com/?id=844) e traduzido por Radamés Rodrigues Neto.

domingo, 7 de agosto de 2011

Marchando contra o esquecimento: Srebrenica como uma ponte entre Ocidente e o Oriente




Marchando contra o esquecimento: Srebrenica como uma ponte entre Ocidente e o Oriente


The english version can be downloaded here 


Zlata Filipovic
No décimo sexto aniversário do massacre de Srebrenica, eu resolvi escrever um pequeno texto em forma de ensaio – como aqueles dos livros de Guinzburg, dos quais eu sou fã – uma vez que minhas motivações para tal composição são tanto pessoais quanto profissionais. Preparo-me para submeter um projeto de mestrado onde pretendo trabalhar com identidade cultural e representação na guerra da Bósnia através da analise de dois álbuns em quadrinhos do Joe Sacco e do diário de Zlata Filipović – a menina que retratou o dia-a-dia de Sarajevo sitiada em seu diário, mais tarde editado em servo-croata pela UNICEF – tendo como fio condutor dessas narrativas o cotidiano.
As linhas que se seguem demonstram um pouco da problemática em torno da guerra, indo além da tradicional resposta ao conflito, de que este foi apenas ocasionado pelo desmembramento da antiga Iugoslávia e indo mais além até as raízes de um problema conceitual, o Oriente. 

1.

Há uma antiga tradição no interior do Brasil chamada de “a procissão das almas” na qual, supostamente, os mortos deixam seus túmulos e vagam pela cidade em procissão a meia noite em ponto no dia de finados. Essa é uma lenda do folclore popular brasileiro, país de maioria católica localizado na America do Sul.
Mufti Mustafa Cerić ao lado de Bill Clinton
Não obstante a gigantesca distancia entre o interior do Brasil e o interior da Bósnia-Herzegovina, há um trágico fato que pode traçar um incrível paralelo entre essas duas culturas aparentemente tão distantes. O paralelo em questão é o dia 11 de julho de 1995, o local Srebrenica, o fato; “A procissão das almas”.
Há 16 anos a Bósnia faz o caminho inverso da já citada lenda, ao invés de seus mortos deixarem os túmulos são seus moradores que deixam suas casas e marcham, refazendo o trajeto de seus pais, mães, irmãos e irmãs que não mais estão presentes em suas vidas cotidianas. Essa marcha recebe o nome de “A marcha da Paz” e até rendeu um livro intitulado Da Rosa ao Pó: Histórias da Bósnia Pós-Genocídio, do jornalista Gustavo Silva.
Os 110 quilômetros da Marcha da Paz são percorridos por olhares vazios, vidas despedaçadas, futuros incertos e saudades, muitas saudades. Esta homenagem as mais de oito mil vitimas, que foram mortas, estupradas ou conduzidas a campos de trabalho forçados faz reacender um sentimento de dor e perplexidade.
enterro coletivo de vítimas recém identificadas
A dor é de ter perdido em tão pouco tempo – entre os dias 11 de julho e 22 de julho de 1995 – mais de 8 mil vidas, a perplexidade é mais profunda e politicamente perturbadora. A Europa, esse patrimônio inviolável, detentor “único” da herança helênica, a Europa que se iluminou com as idéias, que se positivou para fundar a moderna sociologia, que se emancipou do poder despótico de reis e clérigos para fundar sua suposta ilha de paz e prosperidade.

2.

Como esse super continente que nos impõe culturalmente os modelos aceitáveis de subordinação e inferioridade – quando nos colonizou e nos destituiu de nossas riquezas, nossa cultura, nossa alteridade – conseguiu suportar esse – apenas mais um – genocídio em suas terras? Por que as tropas da ONU que estavam lá para defenderem os civis se omitiram do socorro? Como Karadžić e Mladić permaneceram tanto tempo livres? 
Nós – o mundo não civilizado – não éramos economicamente viáveis aos modelos de desenvolvimento largamente difundidos pelos teóricos europeus, e por causa disso, supostamente, nós necessitávamos da dominação estrangeira, para que as luzes da cultura e civilidade européia nos redimissem da culpa de ser selvagem, estrangeiro, bárbaro, oriental. Edward Said, uma das mentes mais brilhantes do século XX, nos agraciou com um livro de importância capital para entender essas e outras questões acerca do trato da Europa aos não europeus.
Edward W. Said
Em sua principal obra “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, Said (2007) discute como a imagem do Oriente foi criada para representar aquilo que estava a leste das fronteiras do que se convencionou chamar de Europa. Essa imagem foi retratada por pintores, músicos, literatos e cientistas e reproduzida pela cultura erudita, popular e pela academia em toda a Europa Ocidental.
A imagem que foi instituída pela Europa, que se apropriou da denominação Ocidente para fazer um proposital contraponto a seu rival idealizado o Oriente, fora a de que o Oriente é uma terra mística, despótica, sensual e exótica, onde a coragem e bravura de qualquer oficial britânico ou inglês deveriam ser testadas. Sendo assim, o Oriente é, por convenção, representado como uma terra onde a violência impera, da qual os esforços para qualquer tipo de paz são em vão e onde os principais vilões aguardam sedentos de sangue por um novo conflito.
integrantes da marcha pela paz.
O massacre de Srebrenica foi na melhor das hipóteses uma grande reportagem para o Ocidente. Essa reportagem consistia no relato fantástico de pessoas brancas, loiras, de olhos claros que viviam em parte do antigo mundo helênico, mas que por questões religiosas tanto das vítimas – bósnios muçulmanos – quanto de seus algozes – a religião majoritária da Sérvia é o cristianismo ortodoxo – foram vistos como uma continuação, na melhor das hipóteses, um mundo intermediário entre a Europa e o Oriente.
Hitler costumava dizer que os eslavos eram a grande sujeira da Europa, e em seu insano plano de dominação mundial, Hitler tinha encontrado um papel para os eslavos, a servidão, a escravidão. Na guerra da Bósnia e em especial no massacre de Srebrenica, os dirigentes das nações que unidas venceram o totalitarismo e salvaram do despotismo totalitário a Europa, foram ainda mais cruéis que Hitler, pois estas, simplesmente, ignoraram o massacre de mais de 8 mil civis no que geograficamente ainda é a Europa.

3.

Depois da guerra da Bósnia, houve ainda mais tensões étnicas nos Bálcãs, desta vez na região do Kosovo, área ao sul da Sérvia que lutou por emancipação desde o fim da Iugoslávia, chegando a tornar-se uma guerra em 1998 e que dez anos depois culminaria na independência deste pequeno país. Este conflito foi motivado por antigas querelas étnicas entre sérvios e albaneses que remontam a idade média.
Mausoléu de Murat I morto na Batalha do Kosovo.
Kosovo e em particular o vale de Melros é uma importante referencia para os eslavos de modo geral, mas igualmente aos albaneses e a todo o mundo balcânico, pois foi lá que em 28 de junho de 1389 que as tropas do sultão Murat venceram a coligação de reinos cristão-balcânicos e começaram o processo de “orientalização” da Europa Centro-Oriental. Nos três séculos seguintes os turcos otomanos iriam expandir seus dominós por toda a região chegando aos subúrbios de Viena, apesar que esta jamais fora dominada pelo Império Otomano.
Um dos maiores expoentes da literatura albanesa, Ismail Kadaré (1999), retratou a batalha do Kosovo em um de seus romances intitulado “Três Cantos Fúnebres para o Kosovo”. Estão retratadas em uma das três partes do livro as andanças dos rapsodos balcânicos que sobreviveram à ofensiva turca.
Ismail Kadaré
Esses caminham sem rumo, vagando para terras distantes sem terem mais para onde voltar. Uni-se a eles um jovem chamado Ibrahim, desertor do exercito turco que quer se converter ao cristianismo, mas não consegue abandonar a fé islâmica.
Ibrahim acompanha os rapsodos que vagam até terras aparentemente germânicas, sendo que em uma dessas cidades que eles chegam, o jovem Ibrahim é preso e condenado pela inquisição a morrer na fogueira pelo crime de heresia. Seu pecado foi ambicionar ter duas religiões ao mesmo tempo.No livro descreve como Ibrahim fora queimado vivo na fogueira e seu ultimo grito foi em latim, um sonoro NON! Uma inefável negação desse mundo.
A “maldição” de Ibrahim parece ter tomado o Ocidente nesse mundo pós queda das torres gêmeas. Há uma política velada de depreciação do Oriente e a intervenção militar em solo Oriental é o trunfo de alguns governos democráticos da atualidade.
O Ocidente é aonde a fé islâmica vêm nos últimos anos se multiplicando, muitos países da Europa Ocidental vem recebendo levas migratórias de indivíduos de países majoritariamente muçulmanos e as conversões são outro fator do crescimento deste credo na Europa.
No entanto, nos Bálcãs, onde as três religiões coabitam há pelo menos quinhentos anos, justamente lá onde o Ocidente beija o Oriente, Ibrahim em sua indecisão profetizou o que os descendentes dos colegas rapsodos iriam fazer uns com os outros.

4.

A Marcha da Paz chega ao monumento em homenagem as vítimas do massacre de Srebrenica. De tempos em tempos se encontram novas valas comuns e os corpos são transladados para o cemitério onde serão sepultados.
É um costume muçulmano colocarem mantos verdes sobre os caixões, nesses mantos geralmente estão bordados em dourado alguns trechos do Alcorão em árabe. A língua oficial da Bósnia é uma variação do servo-croata, chamada língua bósnia.
Muezzin bósnio
Contudo, é o chamado para oração – canção em forma de lamento – do muezzin e a recitação de trechos do Alcorão em árabe que compõem a sinfonia de vozes da marcha. Depois de prestadas todas as homenagens, as milhares de pessoas presentes retornam para suas casa em várias cidades da Bósnia.
Porem, a Bósnia que estes sobreviventes da guerra percorrem não é mais a Bósnia histórica, modelo de tolerância e coexistência de distintos grupos étnicos e religiosos. A antiga Bósnia multi-étnica já não existe mais, agora há apenas faixas étnicas que separam croatas, bósnios e sérvios.
A incapacidade de unir os interesses desses três grupos étnicos se reflete na política, onde a presidência é divida entre três representantes um de cada grupo étnico. A própria seleção de futebol foi penalizada pela Fifa, pelo órgão máximo do futebol internacional, cada time pode ter apenas um presidente, e não três como propunham os dirigentes da seleção da Bósnia.
Srebrenica-Potočari Memorial Center
Já é noite e a maioria dos participantes da Marcha pela Paz já estão em suas casas, porém alguém esta faltando, alguém ficou no monumento, difícil precisar que não regressou das 8.732 vítimas de um onze de julho qualquer. Talvez um pai que deu uma pista falsa na floresta para salvar seu filho, um irmão que ficou de fora da lista de trabalhadores do exercito de monitoramento da ONU, em missão de paz.
Esses corpos franzinos, estes rostos tristes hoje de alguma forma se juntaram a Marcha da Paz. Foram lembrados, foram “chorados”, alguém recuperou sua humanidade destituída tanto por seus algozes que perpetraram a maior limpeza étnica em solo europeu depois da Segunda Guerra Mundial quanto pelo Ocidente civilizado que virou as costas aos muçulmanos bósnios de Srebrenica dizendo-os: “Vocês estão fora de nossa jurisdição!”
Radamés Rodrigues Neto
Criciúma, Brasil. 11de julho de 2011

Referências Bibliográficas:

KADARÉ, Ismail. Três Cantos Fúnebres para o Kosovo. Traduzido por Vera Lucia do Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. 116p

SAID. Edward W. Orientalismo: O oriente como invenção do ocidente. Traduzido por Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 523p.

SILVA, Gustavo. Da rosa ao pó: Histórias da Bósnia pós-genocidio. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2011. 199p.