Muçulmanos bósnios: Ameaça ou oportunidade?
Sabina Niksić[1]
“Muçulmanos bósnios querem atuar como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente.” Sabina Niksić.
Com sua cultura européia e fé islâmica, os muçulmanos da Bósnia querem agir como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente, mas ainda sim, sentem-se rejeitados. Há momentos em que Aida Begić entra em um avião e o olhar que recebe dos outros passageiros a lembra sobre os medos das pessoas e dos mal-entendidos sobre o Islam.
Famosa diretora de filmes bósnia, ela voa para festivais de filmes do mundo inteiro vestida com peças de ultima moda, mas ainda distintamente islâmica – um lenço cobrindo a cabeça e roupas descendo até os tornozelos e pulsos. “Se você usa um lenço na cabeça as pessoas imediatamente supõem que você deva ser mal-educado e primitivo”. Diz Aida, 33, cujo primeiro filme longa metragem Snow (neve) foi premiado em Cannes em 2008.
O medo global de voar com muçulmanos fazem parte do cotidiano de Begić. Apesar disso, ela nega que haja qualquer conflito entre sua fé e sua apreciação da cultura ocidental.
“Sou formada em literatura, artes e música, Bach é uma parte da minha identidade assim como Jalaludin Rumi (poeta e místico muçulmano)”, diz ela.
De fato, alguns especialistas acreditam que a comunidade islâmica dos Bálcãs, na qual a fé islâmica desenvolveu-se num contexto europeu, podem servir como uma ponte entre o oriente islâmico e o ocidente cristão.
Porem, a fidelidade dos muçulmanos da Bósnia a estes dois mundos foi severamente testada recentemente. Eles se sentem traídos pela Europa durante a guerra da Bósnia – 1992 a 1995 – e sentem-se excluídos desde então. Por outro lado, o oferecimento de assistência durante a guerra por alguns muçulmanos teve um preço.
Um Islam muito europeu.
O Islam chegou à Bósnia através da conquista Otomana em 1463 e espalhou-se através da conversão das populações eslavas locais. No entanto, apesar de mais de 400 anos de dominação otomana, o Islam nunca dominou completamente a vida religiosa da Bósnia, o país conta com cristãos ortodoxos e católicos além de uma pequena comunidade judaica.
“Pelo menos quatro diferentes religiões tem sido praticadas na Bósnia durante séculos”, explica Jusuf Ziga, professor de ciências políticas na Universidade de Sarajevo. “Mudaram-se os exércitos, mudaram-se os regimes, mas este fato é uma constante”.
Quando o Império Austro-Húngaro expulsou os otomanos da Bósnia-Herzegovina no século XIX, o país caiu sob o domínio da monarquia vinda do Danúbio. Extirpado do mundo islâmico os muçulmanos bósnios começaram a procurar sua própria identidade dentro de um contexto cristão e europeu.
Esta questão ganhou novo vigor no final do século XX, acompanhado de dramáticas mudanças no panorama político e ideológico.
Debates sobre o papel da religião, que foram mais ou menos deixados de lado durante o período comunista, foi retomado com vigor.
Mustafa Dzeko, 72, relembra como a sua religiosidade perturbava seus colegas durante o período comunista. Naquela época, muitos muçulmanos abandonaram as práticas religiosas e passaram a considerar o termo muçulmano como sendo uma etnia ao invés de uma identidade religiosa.
Outros cultivaram um senso de solidariedade com os vizinhos de outras crenças que compartilhavam sua luta para manter as identidades religiosas em face da repressão ideológica. “Eu nasci em uma família patriarcal muçulmana, mas meu velho pai fazia-me levantar em sinal de respeito quando ouvíamos o som dos sinos da igreja”, lembra Dzeko.
Retorno da fé.
A religião triunfantemente (re)entrou na arena publica nos anos de 1990. Após a queda do comunismo. Novos lideres nacionalistas aproveitaram a repressão de sentimentos religiosos e nacionais alimentando temores que outros grupos étnicos pudessem ganhar poder.
“Quando o país que as pessoas acreditavam deixou de existir, este tinha que ser substituído por outra coisa, e Deus teve que ser colocado de volta”, diz Aida Corović, uma sociologa da cidade predominantemente muçulmana de Novi Pazar, na região de Sandžak na Sérvia.
Na Bósnia, comunidades religiosas alegremente aceitaram esta oportunidade de restabelecer a eles próprios como uma força na sociedade após décadas de silencio.
Durante a noite, ser visto em uma igreja ou mesquita tornou-se um ato de oportunismo político tanto quanto uma prova religiosa de fé. “Não era incomum que as pessoas começassem a participar das orações na (principalmente em Sarajevo) Mesquita Bey, esperando com isso ganharem favores, tais como permissão para abrir uma mercearia”. Lembra o professor Adnan Silajdžić da Faculdade de Ciências Islâmicas de Sarajevo (FIN).
O despertar do nacionalismo étnico pavimentou o caminho para as guerras que destruíram a Iugoslávia nos anos 1990. O conflito se espalhou da Croácia para a Bósnia, em 1992, após a última declarar independência, apesar da oposição dos sérvios, que constituíam por volta de um terço da população da República da Bósnia.
As crescentes evidências de que a Sérvia e a Croácia estavam conspirando para dividir a Bósnia, levou os muçulmanos a fazer valer sua reivindicação para o país como seu estado-nacional.
Em 1993, os lideres políticos muçulmanos escolheram um novo nome étnico para a sua comunidade – bosniaks – e começaram a identificar este renomeado grupo nacional com o Islam.
Isto provocou uma luta ainda em curso no seio da comunidade muçulmana da Bósnia entre o Islam político e o espiritual. No centro dessa disputa há muitos bosniaks que valorizam sua herança cultural muçulmana, mas rejeitam a política religiosa e nacionalista.
Como a maioria dos ateus, a Bosniaks politicamente liberal, Jasmila Zbanić, outra diretora de cinema reconhecida internacionalmente, acusa os líderes nacionalistas bósnios de usar a religião para alimentar divisões e manter o poder.
"Eles trabalham duro na construção de uma identidade de 'vítima' para os bósnios e na identificando os Bosniak com a religiosidade porque eles não podem oferecer a opção de uma sociedade pluralista", diz ela.
"Pelo menos 80 por cento das pessoas "religiosas" que eu conheço nem sequer lêem atentamente o Alcorão... [mas] eles precisam do conforto da religião e sua idéia de que de alguma forma o sofrimento é bom porque faz parte de um plano divino."
Os bósnios foram de longe às maiores vítimas do conflito em termos de números. Por volta de 80 por cento dos cerca de 100 mil mortos na guerra eram bósnios.
Enquanto a ONU enviou observadores de paz e ajuda humanitária, a comunidade internacional fez pouca pressão para frear, principalmente os sérvios que levaram campanhas de "limpeza étnica", o que obrigou centenas de milhares de muçulmanos a deixar suas casas.
Um embargo apoiado pelo Ocidente sobre o fornecimento de armas para a região ajudou os já bem armados sérvios e prejudicou os muçulmanos mal armados e cercados.
Extremistas oferecem ajuda.
A difícil situação das comunidades “indígenas” muçulmanas da Europa chamou a atenção dos extremistas ao redor do globo.
De acordo com especialistas, entre 3 a 5 mil voluntários estrangeiros, principalmente árabes, viajou para os Bálcãs entre 1992 a 1995 para lutar ao lado dos muçulmanos da Bósnia.
Com eles, trouxeram o wahabismo, uma interpretação radical do Islã da Arábia Saudita, com o qual os muçulmanos bósnios não estavam familiarizados.
Esta ramificação extremista do Islã, que não só proíbe as mulheres de sairem de casa sozinhas, dirigir ou caminhar em meio a homens solteiros e também pede aos muçulmanos que rejeitam a companhia de "infiéis" atraiu inicialmente alguns muçulmanos da Bósnia que lutaram ao lado dos árabes.
"Não há chance de que [o Ocidente] não sabia o que estava acontecendo aqui... mas só eles [árabes voluntários] vieram para nos ajudar, e agora eles são retratados como terroristas", queixa-se Semin Rizvić, 39.
Um cantor da Bósnia Central no pré-guerra, Rizvić abraçou o Islã conservador, enquanto lutando ao lado dos árabes, e hoje a maioria dos bósnios o descreveria como um wahabita por causa de sua longa barba e esposa totalmente coberta.
"Neste momento, só sou descrito como terrorista pelo Ocidente, mas eles [tradicionais muçulmanos bósnios] serão os próximos", prevê.
Quando a guerra terminou, os fundamentalistas religiosos continuaram a penetrar na abalada sociedade Bósnia. Arábia Saudita financiou uma série de instituições de caridade que tentou convencer os tradicionalmente mais moderados muçulmanos bósnios a abandonar a sua versão da fé.
Em um país arruinado pela guerra e com taxas de desemprego entre 80 e 90 por cento, os incentivos econômicos que essas instituições de caridade estavam oferecendo tentava muitas pessoas a adotar a “verdadeira” e sauditas vertente do Islã.
Enquanto a comunidade islâmica oficial da Bósnia, liderada por Mustafá Cerić, focada na alta política, os ativistas wahabitas pregam a todos aqueles que se sentem negligenciados pela sociedade – os jovens, os incultos, os pobres e os confusos.
As novas comunidades wahabitas – pequenas, mas barulhentas – atacam as praticas tradicionais dos muçulmanos bósnios. Argumentos irrompem nas mesquitas, onde os tradicionalistas às vezes recorrem a socos para expulsar seguidores wahabis, que os acusam de serem “falsos” crentes.
"Muçulmanos bósnios foram muito ofendido", lembra Ziga. "Eles não estavam dispostos a aceitar esses problemas políticos, dos que acreditam falarem em nome de Deus que transformaram as mulheres em tendas ambulantes."
A gravidade do conflito entre os seguidores das duas diferentes interpretações do Islã foi realçada quando a polícia sérvia prendeu 12 supostos wahabitas na região Sandžak em 2007.
Em julho de 2009, um tribunal de Belgrado condenou-os a mais de 60 anos de prisão por planejar ataques terroristas e assassinatos. A meta incluía o ataque a Muamer Zukorlić, um líder clerical islâmico local que está intimamente ligado à comunidade islâmica da Bósnia.
"Eles esperavam desestabilizar a nossa comunidade islâmica, e eles quase conseguiram", diz Rešad Plojović, um assessor de Zukorlić.
Wahabismo em retirada.
Na Bósnia, a Comunidade Islâmica enfrenta crescentes críticas de Bosniaks liberais e seculares que os acusam de ter apoiado discretamente a ascensão do wahabismo.
"É possível que Cerić é inspirado pela filosofia do movimento wahabita, cujos prejuízos as atividades da comunidade islâmica nunca foram abertamente repudiados", disse recentemente o jornalista Damir Kaletović no popular programa de investigações televisivo, 60 minutos.
Cerić rejeita categoricamente essas críticas e descreve seus críticos como: "os seguidores de idéias comunistas ossificadas que se envergonham de sua própria identidade”. Existem mais wahabitas em Viena do que em toda a Bósnia.
Alguns especialistas em segurança e estudiosos concordam, alegando que as preocupações expressas sobre a ascensão do radicalismo religioso na Bósnia têm sido muitas vezes exageradas.
Eles vêem os ataques contra as lideranças islâmicas como uma reação à tentativa Cerić de aumentar o papel da religião na sociedade bósnia.
"Os muçulmanos estão lutando por uma identidade étnica e nacional, em vez de uma identidade religiosa," sustenta Dino Abazović, um estudioso da sociologia religiosa em Sarajevo.
"A experiência de viver em uma sociedade historicamente secular tem tido uma influência muito maior sobre a comunidade muçulmana da Bósnia que qualquer um dos debates religiosos no curto período pós-comunista", acrescenta.
Na verdade, a rede wahabita na Bósnia começou a se dissolver quando o país retornou gradualmente à normalidade depois da guerra. Os extremistas sofreram outro golpe após as autoridades fecharam uma série de instituições de caridade sauditas após os ataques terroristas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001.
Hoje, alguns ex-wahabitas voltaram a práticas islâmicas tradicionais, enquanto outros estão voltando para a comunidade muçulmana da Bósnia que uma vez os rejeitou.
Semir Imamović, editor do semanal Saff, uma publicação wahabita que se reposicionou como uma revista conservadora islâmica exemplifica essa mudança de coração.
"A comunidade islâmica é a instituição religiosa suprema dos muçulmanos bósnios, e nós respeitamos isso", diz ele. "Todos os muçulmanos são meus irmãos, mas podemos discordar e criticar uns aos outros." Hoje, a Saff freqüentemente critica o extremismo religioso e apóia o diálogo inter-religioso.
Esta mudança de posição deixou alguns seguidores radicais do wahabismo sentindo-se irritados e abandonados, no entanto, eles ainda sonham com um estado puramente islâmico.
“A Bósnia pode ser um estado muçulmano” diz Senad Hukić, um economista de trinta e poucos anos da parte nordeste de Tuzla. “A comunidade islâmica, com sua visão distorcida do Islam, nunca trará progressos para este país.”
Hukić diz que um modelo para uma verdadeira sociedade islâmica pode ser encontrado em uma das pequenas comunidades puramente wahabitas remanecentes. A aldeia nordeste chamada Gornja Maoca.
Lar de devotos “linha dura”, essa comunidade vive num estado de isolamento virtual, sem acesso a aparelhos comuns como televisão ou telefone, a policia mantém uma constante vigilância.
Nusret Imamović, um chefe de aldeia local, recusou-se em falar com este jornalista. Um intermediário explicou que Imamović acredita que “nossa mensagem é sempre distorcida.”
Juan Carlos Antunez, um militar espanhol especialista em extremismo religioso com anos de experiência na Bósnia, diz que o Islamismo radical não representa uma grande ameaça.
Ele estima que dentre a população bosniak, que é de cerca de 2 milhões, não mais que 3.000 sigam a versão patrocinada pelos sauditas do Islamismo. Destes, um número menor, cerca de 200 “poderiam pensar em um caminho perigoso e exigem acompanhamento especial.”
Antunez adverte que colocar todos os muçulmanos da Bósnia sob um escrutínio especial passa a mensagem errada, ao sugerir que todos os muçulmanos não são confiáveis.
“O principal obstáculo para a disseminação do Islam radical na Bósnia não é a OTAN ou a União Européia ou qualquer outra organização internacional, mas os próprios muçulmanos daquele país” sustenta Antunez.
“Muçulmanos bósnios não são uma ameaça para a Europa, são uma oportunidade.”
Não nos excluam.
Com todos os seus desentendimentos, muçulmanos bósnios religiosos ou seculares unem-se em um sentimento de exclusão por parte da Europa em meio a sua pior crise política do pós-guerra.
Eles dizem que o Ocidente não conseguiu verificar o nacionalismo radical dos sérvios da Bósnia, juntamente com sua retórica de secessão, e continuam a discriminar os muçulmanos bósnios.
Eles especialmente ressentem-se da recente decisão da Comissão Européia de conceder isenção de vistos para os cidadãos da Sérvia, mas não aos da Bósnia Herzegovina.
Como bósnios croatas e sérvios bósnios muitas vezes tem dupla cidadania, com passaportes da Croácia ou da Sérvia que podem esperar tiara o Maximo proveito do novo regime de vistos. Como resultado, a exclusão da Bósnia efetivamente barra só a comunidade muçulmana da Europa.
Bruxelas insiste que compete ao governo bósnio garantir que o país atenda os padrões de referencia necessários que permitam a Bósnia unir-se ao regime de isenção de vistos, mas poucos muçulmanos bósnios levam esta mensagem como válida.
“Isto nos coloca numa posição de discriminação psicológica e nos faz sentir indesejados”, diz Cerić sobre a decisão de Burxelas.
Alguns especialistas acreditam que este senso de exclusão pode radicalizar os muçulmanos da Bósnia, embora seja mais provável que este radicalismo assuma a forma de nacionalismo secular do que de fundamentalismo islâmico.
Sacir Filandra, presidente da organização cultural da comunidade Bosniak, Preporod, diz que a Europa esta perdendo uma oportunidade de moldar a identidade de uma nova geração de muçulmanos bósnios.
“Se você isolar uma comunidade e tratá-la com desconfiança, isso vai em algum momento começar a afetar a maneira que a comunidade percebe-se”, diz ele.
Precisamos conversar.
Medina Velić, uma muçulmana bósnia que agora vive na Áustria, relembra a experiência de discriminação anti-muçulmana em Viena, quando ela começou a usar o lenço islâmico aos 16 anos.
“No primeiro dia de aula daquele ano, minha professora de pelo menos cinco anos disse a todos que eu era uma aluna nova e pediu para eu me levantar e me apresentar” lembra-se agora com 22 anos. “Para eles, eu não era mais a mesma pessoa”.
Velić tinha 11 anos quando sua família se mudou para Viena, onde seu pai foi enviado para trabalhar como Imam e sua mãe como professora de religião para a numerosa comunidade bósnia muçulmana. Apesar de estar na extremidade da recepção de “percepções estereotipadas” por parte de alguns cidadãos europeus, ela insisti que a interação dos muçulmanos bósnios com a civilização ocidental tem sido geralmente mutuamente benéfica.
“É muito importante para os muçulmanos iniciarem o dialogo para ajudar os outros a nos conhecer, precisamos conversar!” Afirma Velić.
Outros muçulmanos bósnios que vivem agora na Áustria concordam: a fé islâmica e os valores europeus não são contraditórios. "Provamos que é possível ser tanto muçulmanos quanto europeus," diz Belkisa Bulut, 45 anos.
“Nós vamos a shows de rock e a peças de teatro, mas também vamos a mesquita”, ela adiciona “O nosso Islam é o melhor exemplo para o Islam na Europa”.
[1] Matéria originalmente publicada em 31/10/2009 em lingua inglesa na web site da revista alemã Globalia (http://www.globaliamagazine.com/?id=844) e traduzido por Radamés Rodrigues Neto.